A televisão é monótona, dá sempre o mesmo. Os livros, que contam histórias, não percebem que por vezes também eu tenho histórias para escrever e que, por isso, nem sempre lhes posso dar a atenção que pretendem. Acabo sentada na chaise longue a ver os programas habituais da hora, até adormecer de tédio.
*
Sinto-me em movimento. Estou num sítio onde nunca estive. Talvez numa estrada deserta em plena Austrália. Sim, sem dúvida. Sentada ao pé do condutor, tenho a perspectiva perfeita da paisagem harmoniosa do interior da ilha, enquanto a percorro. Rapidamente me apercebo que parti numa daquelas longas viagens, como nos filmes, naqueles carros descapotáveis clássicos, com o vento a bater-me nos cabelos, fumando um cigarro e partilhando vivências com amigos que nunca tinha visto antes.
Discutíamos um sítio decente para passar a noite.
-"Nem penses, não quero acampar. Tenho medo à noite"- a rapariga sentada atrás de mim resistia à única solução possível.
-"Oh, vá lá Mel, é só uma noite! Além disso podes sempre dormir ao pé de mim, eu protejo-te"- o rapaz ao lado dela tentava acalmar a situação.
Todos rimos. A Mel era morena, tinha o cabelo curto. Bonita, cara de modelo.
-"Claro Edu. Tu? Proteges-me?"- sempre céptica.
O Edu, loiro, alto, giro, fez-lhe cócegas e beijou-a.
O carro parou.
-"É mesmo aqui pessoal. Este sítio é... perfeito"- o rapaz-condutor saiu do carro, encostou-se ao capot e acendeu um cigarro, contemplando a sua "escolha territorial".
Com roupas tipicamente descontraídas, bronzeados e doridos da viagem, observámos o local. Era um sítio realmente perfeito, seco e meio árido, onde o sol tocava a terra num perfeito e colorido pôr-do-sol.
-"Não agradeçam, se não fosse eu dormíamos no carro"- prosseguiu.
-"É lindo Liam. Só espero não ter nenhuma surpresa"- a Mel continuava a não gostar da ideia de acampar.
-"Vamos montar a tenta Mel"- chamou o Edu -"Eles já lá vão ter".
O Liam abraçou-me, ainda encostado ao carro. Beijou-me na testa e olhou para mim. Naquele momento deparei-me com os olhos mais profundos que alguma vez tinha fixado e que de alguma maneira provocaram em mim algo docemente assustador.
*
Abro os olhos.
De volta à sala, "Donas de Casa Desesperadas" na TV. A minha mãe está sentada ao pé de mim; pergunta-me com foi a "siesta". Respondo: "mãe, um dia, quando emigrar para a Austrália ou assim, vou esforçar-me para ter uma vida ainda melhor que a que tenho agora. E, depois de ter atingido a estabilidade geral da coisa, ainda hei-de comprar um descapotável clássico".